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Wednesday, February 13, 2019

[ O capuchinho vermelho ]





Então cá vai uma narrativa autobiográfica…
Corria o ano de não sei quando… Era eu – o personagem principal desta história – um muito tenro jovem de uns 12 ou 13 anos. Esta avaliação não é de todo precisa, e tem por base estimativas relacionais com outros eventos, ocorridos alguns anos mais tarde. A minha idade na altura é então assim calculada com base em somas e subtracções cronológicas aproximadas, em relação a eventos outros, felizmente mais marcantes, nos quais a minha idade era mais relevante, e como tal mais facilmente estimável.
Nesse tempo, o meu pai vereava o pelouro da cultura na câmara municipal de Évora. As minhas férias escolares contemplavam sempre uma deslocação até ao Alentejo para a habitual visita filial.
Durante as estadias dessa fase, o meu pai nem sempre conseguia férias, ou até tempo livre. 
Tive a minha quota parte de jantares oficiais e eventos de representação, facto que recordo com satisfação. Foram momentos engraçados.
Mas também passei muito tempo sozinho, vagueando pela cidade e arredores.
Fui algumas vezes ao cinema, às sessões da tarde do desaparecido Eborim, primeiro centro comercial da cidade, com as suas "fantásticas" salas 1 e 2, no qual, a bem da facturação do dia, não se perguntava a idade aos compradores de bilhetes, tornando irrelevante a classificação etária associada aos filmes em exibição.
No verão, durante o mês de Junho, decorria a feira de S. João, no Rossio de S. Brás. Essas noites eram de alegria. A feira, como evento marcante de uma cidade alentejana de grande dimensão, misturava uma componente agrícola (animais, alfaias e máquinas de grande porte) com a abordagem cultural da região (ranchos de folclore e mostras de gastronomia regional), e ainda as diversões típicas deste tipo de feiras (carrosséis, carrinhos de choque, farturas, etc.). 
Durante a tarde, com temperaturas já bastante elevadas, o grande terreno da feira era um recinto algo bizarro. Toda a animação nocturna estava desligada. Muita daquela gente feirante dormia a sesta, descansando da agitação da madrugada anterior, e preparando-se para a da noite vindoura. 
A luz do dia tornava a enorme área de implantação do evento num grande emaranhado de puxadas de electricidade, extensões eléctricas, contadores e quadros improvisados, alimentando uma cidade de rulotes e atrelados… à tarde tudo isto era varrido pelo cheiro a polvo e torresmos grelhados.
Este enorme acampamento heterogéneo virava um labirinto propenso a situações pitorescas e encontros estranhos. Jamais esquecerei a minha experiência voyeur em que no anonimato proporcionado pelos planos desencontrados de rulotes, assisti por acidente, a um muito jovem ciganito beijando recorrentemente na boca uma ainda mais jovem e chorosa ciganita, que claramente incomodada, mas indefesa, nada podia para pôr fim àquele abuso muito pouco infantil. Recordo-me de ter sentido uma profunda má disposição física abdominal… imagino que como se tivesse acabado de presenciar o consumar de uma violação. Perto desta cena estavam dois adultos recostados em cadeiras "de praia", aproveitando a sombra de um pano estendido entre 4 prumos… nada fizeram para pôr termo a esta brincadeira.
Lembro-me também de forma muito nítida do casal chinês, de idade avançada, que possuía uma pequena barraca de gelados de máquina. Passei bastante tempo à conversa com o senhor chinês, durante algumas tardes, enquanto ele montava o aparato feirante para a noite que se aproximava. Eu era mais ou menos adoptado durante um bocado da tarde, num relacionamento de curiosidade e reconhecimento mútuos.
Visitei alguns monumentos, e claro, percorri a pé ou de bicicleta, as ruas da cidade e respectivos jardins…
Foi nessa altura que descobri que os jardins pouco frequentados são um pólo de atracção de vários tipos de transviados sociais.

O jardim municipal de Évora é grande. Encontra-se maioritariamente intra muralhas da cidade, e distribui-se por dois grandes níveis. Em baixo, desenvolve-se em áreas amplas, com pouca vegetação. Em cima, envolve o Palácio de D. Manuel e estende-se por intrincados caminhos de terra batida, ladeados por manchas de vegetação frequentemente densa. À boa moda dos jardins inspirados no romantismo, também este é possuidor de inúmeros recantos vegetais onde se decidiu implantar bancos de pedra, ou da tradicional tipologia pés-de-metal-preto-a-imitar-troncos, sustentando estes, grossas tábuas de madeira verde.
Na face sul do jardim, no patamar superior, à beira do limite imposto pela muralha que aí tem pouco mais do que a altura da cintura, existe um desses recantos introspectivos. Esse recanto tem dois bancos de pedra, ambos posicionados perpendicularmente à referida muralha, e de frente um para o outro. Entre ambos encontra-se uma grossa mesa redonda, toscamente esculpida em pedra.
Numa das tardes em que nenhum outro programa se me apresentava como melhor, lá me embrenhei no emaranhado verde. Como sempre, durante bastante tempo estive sozinho. Caminhei sozinho pelos caminhos de terra batida… deambulei sozinho pelos limites da muralha.
Muito raramente alguém se cruzou comigo.
Chegado a este recanto, o tal da mesa de pedra, o enquadramento pareceu-me fantástico e altamente convidativo a uma paragem contemplativa. Pela sua posição mais elevada optei por me sentar em cima da mesa, de pernas cruzadas, virado para sul, ou seja, com vista para uma parte da cidade, contemplada por cima da muralha que dava por, um pouco acima da cintura.
Tinha o corpo à sombra… a alma tranquila.
Assim estive durante um bocado, até que…
…nessa tarde o lobo mau sentou-se ao meu lado.
…ocupou o banco de pedra situado à minha esquerda, ficando sentado de frente para mim..
Quando o lobo mau surgiu num dos caminhos que davam acesso ao local em que eu me encontrava, naturalmente orientei o meu olhar na sua direcção.
Ele teria entre 55 e 60 anos, possuía uma estatura mediana, para o baixo, usava óculos, e dirigiu-me também um olhar, o qual classifico como desconfortavelmente demorado, levando-me a mim a olhar para outro lado.
O facto de eu me encontrar sozinho num local semi-deserto, e alguém aparecer, decidindo sentar-se a cerca de dois ou três metros de mim, virado de frente para a minha pessoa, foi, obviamente, suficiente para fazer soar um forte sinal de alerta.
A partir desse instante toda a minha atenção ficou concentrada na informação proveniente da minha visão periférica, gerada pelo meu olho esquerdo.
O meu rosto permanecia no entanto direccionado para a frente, dirigido à ampla vista do lado sul da cidade.
O lobo mau, por seu turno, olhava na minha direcção.
Cada segundo daquele momento me pareceu infindável. 
Eu não sentia medo. Sentia sim um enorme desconforto, e sentia-me também afrontado…
Encarava como um enorme abuso o facto de aquele indivíduo saltar sobre todos aqueles obstáculos sociais, e ter assim o descaramento de se ir posicionar ali, ao meu lado, virado para mim, afrontando-me com o seu olhar ostensivo e insistente.
Em mim crescia silenciosamente uma certa ira motivada por aquele intrusivo abuso… Como é que ele se atrevia?…
A dada altura o braço direito do indivíduo moveu-se… A sua mão direita assentou demoradamente sobre uma determinada parte do corpo, criando assim um contexto incompatível com a presença num local público… a sua mão demorou-se aí.
Para mim tornou-se bem claro que era altura de me ir embora. Desci de forma enérgica e segura do meu posto de contemplação sobre a mesa, e, sem voltar a olhar directamente para o indivíduo, iniciei o meu afastamento na direcção oposta àquela da qual ele tinha vindo.
Após um número de passos considerável olhei para trás. Sem grande surpresa constatei que o lobo mau vinha no meu encalço.
Terei dado mais alguns passos, certamente em ebulição crescente, até assumir um modo operativo que já conheço em mim de outras situações na vida... é caracterizado por eu assistir a acções que o meu corpo desempenha sem consultar a razão.
O meu corpo ostensivamente parou…
Ostensivamente baixou-se…
Ostensivamente apanhou um pedregulho de dimensões adequadas ao encaixe e preenchimento da palma da mão direita disposta em concha…
e ostensivamente, virou-se para trás…
O lobo mau estava também parado, imóvel, surpreso… Fazia o que os lobos fazem perante a contrariedade… analisava o contexto e as alternativas que se lhe apresentam.
O lobo mau deu meia volta, e voltou a trote para de onde tinha inicialmente vindo…
Nessa tarde, tudo podia ter corrido mal, muito muito mal… 
… mas à semelhança do pequeno capuchinho vermelho referido no texto de Lídia Jorge, também eu tive sorte.

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