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Wednesday, June 17, 2020


Este desenho foi riscado a sangue.
Trata-se da representação parcial de um crânio de borrego, materializada através da utilização de um canal de cobre, de secção reduzida e ponta achatada, riscando e ferindo uma grossa folha de 350 gr de papel de algodão.
A ferramenta tem tanto de original quanto de bizarro, eu sei… foi imaginada e produzida por mim, e a escolha de material foi um pouco condicionada pelos despojos existentes nas gavetas da enorme estante de madeira maciça, âncora transgeracional da cultura familiar, que estava nessa altura fundeada no meu espaço da trabalho. A ideia ocorreu-me quando, necessitado de criar uma forma de fazer o material tingidor do papel (o tal sangue), fluir suavemente à velocidade do arrastamento da mão pela superfície a tingir (o tal papel), fui claramente inspirado na dinâmica através da qual funciona a escrita com penas de aparo. Em termos operativos resultou bastante bem.
Permitiu-me realizar uma série de desenhos reunidos numa exposição a que chamei "Natureza Morta" (a relação do título com os referentes e técnicas utilizadas parece-me dispensar explicação).
Essa exposição foi o culminar de um percurso iniciado nas aulas de desenho de Belas Artes, através da representação em grande formato de ossos de cavalo, couves portuguesas, etc., obtidos em deslocações frequentes ao mercado da ribeira, e com arranque acompanhado/orientado, para minha grande sorte, pela nossa excepcional professora de Desenho de segundo ano, Luísa Arruda.
Na altura em que finalizei este conjunto de trabalhos, a escolha de trabalhar com sangue, estando eu a desenhar elementos orgânicos, e sendo o próprio sangue uma matéria-prima cromática também ela orgânica, pareceu-me de enorme coerência conceptual.
Por outro lado tratava-se de recuperar o recurso a um pigmento já amplamente usado numa determinada fase da história (também ela totalmente orgânica).
Tudo isto era mentalmente bem digerido em regulares passeios de dois dias à Serra de Sintra… serra essa também muito orgânica : D
Saltando agora para um períudo mais recente, mas não abandonando a temática…
Sobre sangue há algo mais que tenho a dizer.
Há 235 dias, num post deste blog cujo contexto era o da práctica do barbear tradicional, iniciada aliás na manhã seguinte a esse post, e não mais abandonada, deixei no ar estagnado deste repositório de publicações uma questão pendente… Volto a enunciá-la:

(…)
"Resta saber se dos inúmeros cortes que irão certamente aparecer no rosto deste ilustrador,
jorrará sangue vermelho, ou… tinta preta.
"

Pois, dos cortes feitos na pele do meu rosto ao longo de todos estes dias de barbear tradicional, tem de facto brotado um fluído negro… se é sangue ou tinta não sei. Como está bem patente no texto deste post o potencial pictórico desse fluido é ENORME… Torna-se assim difícil rotulá-lo.
Uma coisa é certa… trata-se garantidamente de uma orgulhosa herança de minha trisavó Jacinta Vieira Lorta, que o desencontro geracional já não me deixou conhecer neste plano de existência – fica para depois trisavó ; ) – mas acredito que tal encontro ainda virá a acontecer.
O barbear tradicional, esse, está na minha vida para ficar. O objectivo principal que me levou a adoptá-lo, de carácter ecológico e de sustentabilidade, foi claramente atingido.
Já os cortes são cada vez menores e mais raros…
A experiência acumulada tem destas coisas.