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Monday, August 15, 2022

[ Lincoln ]


A morte de um ser humano excepcional não provoca sequer o silêncio dos pássaros, nem o fim do rumorejar das folhas na copa das árvores… O extermínio de 6 milhões de seres humanos não altera a brisa, o vento, o fluir das águas nos rios, ou a cadência suave das ondas do mar.

Esta espécie pode desaparecer, e o universo físico nem sequer pestanejará.


POST SOUNDTRACK:

https://www.youtube.com/watch?v=2zK2Wf4Cblc

Friday, August 5, 2022

[ Românico ao romper da aurora ]


POST SOUNDTRACK:

https://www.youtube.com/watch?v=ON-j7xjUfNQ  


Esta é uma das minhas ilustrações preferidas do Marca a Página 11, da Porto Editora.

A perspectiva do ângulo de representação que escolhi para o enquadramento é obviamente um dos motivos desta preferência.

Mas, também decisivo para tal, é o contexto narrativo a que a ilustração se destina. Nesta parte da acção, Simão Botelho encontra-se a contemplar o romper da aurora, sentado nos degraus do patamar da igreja. À sua frente, o calor cromático da luz solar começa a conquistar a frieza azulada do fim da madrugada, que o nascer do dia vai deixando para trás.

No corpo da personagem, a luz amarelada dos primeiros raios de sol vai anulando os azuis acinzentados que até então o envolviam.

Por detrás desta figura, em jeito de moldura, vê-se um pouco da pesada fachada de granito, da igreja. O arco da entrada, de volta perfeita, cria na sua profundidade, uma zona de sombra que faz a transição da luz exterior para a obscuridade contemplativa do interior. A rosácea por cima da entrada, será a principal fonte da ainda assim reduzida luz da nave central. 

Traços claros de Românico…

No curriculum programático dos então cinco anos do meu curso de Belas Artes, o primeiro nível da cadeira de Fotografia (Fotografia I), era de frequência obrigatória. Fi-lo com muito entusiasmo. Nesse ano, como em qualquer primeiro nível de uma disciplina técnica, numa primeira fase, os alunos são levados em viagem aos primórdios das práticas da área em causa, para conhecer e interiorizar os princípios orientadores da técnica, permitindo posteriormente aspirar a dominar as variáveis que condicionam o desempenho operativo. Esse percurso levou-nos, a nós alunos, a captar prolificamente imagens, através de um sistema denominado "caixa com furo de agulha". Este método converte qualquer vulgar caixa de sapatos, num mágico sistema de captura de fragmentos da realidade. 

O valor do diâmetro do furo de agulha (a rosácea), cozinhado com a intensidade da luz no local, medida por fotómetro manual, em articulação com o tempo de exposição e a distância focal (tempo pelo qual a luz atravessa a nave central), projectam na parede de fundo da caixa (a do altar), devidamente pré-forrada a papel fotográfico (virgem), o instantâneo invertido do tal fragmento de realidade.

A Faculdade de Belas Artes de Lisboa, ocupa parcialmente o Convento de São Francisco, na zona histórica da cidade. As características arquitectónicas deste edifício proporcionam enquadramentos cénicos incríveis, e assim, muitas das minhas "fotos" de "caixa de furo de agulha", resultam em registos fantásticos de recantos conventuais, traduzidos na linguagem granulosa, de um preto e branco pouco focado, característica da técnica "de furo de agulha".

O resultado formal destas experiências afigurou-se-me fascinante.

A frequência de Fotografia II já era opcional. O programa desse segundo degrau formativo pressupunha o desenvolvimento anual de um tema auto-proposto. Perfeito…

Sendo uma cadeira externa ao currículo obrigatório do curso, a não obrigatoriedade de aprovação no final do ano, permitir-me-ia desenvolver o percurso do patamar II, ao ritmo a que me fosse possível, sem a pressão da necessidade de obtenção de nota.

Vi aí a oportunidade para dar largas a este tal fascínio recém-descoberto.

A escolha do tema que me proporia trabalhar, foi bastante evidente, embora assumidamente muito pouco sintética: "Estruturas e espaços de inspiração religiosa e sua relação com a luz". Muitas palavras para caracterizar a abrangência de um tema ainda mais extenso que o título, tanto em etapas, como em caminhos a percorrer. 

Mas eu tinha tempo…

O meu plano passava por registar e digerir esta estranha e volúvel relação entre devoção, e, maior ou menor isolamento lumínico.

A obscuridade, própria de muitas das estruturas de motivação religiosa, pontualmente interrompida por farpas de luz provenientes de aberturas ou interrupções dos planos sensorialmente limitadores, prometia registos fotográficos belos e misteriosos. Por outro lado, a torrente de luz colhida pelos enormes e numerosos vitrais das grandes catedrais do gótico tardio, ou até mesmo o céu aberto das capelas im"perfeitas" do mosteiro da Batalha, era também algo que me fascinava.

O meu alinhamento de trabalho incluía então, desde monumentos megalíticos até igrejas góticas, tendo pelo meio, muito, mas muito… românico. Na verdade seria esse o meu principal campo de recolha.

Iniciei os registos com fotografias na Sé de Lisboa, já bem minha conhecida, e em algumas igrejas espalhadas pontualmente por paisagens alentejanas. 

Conjugando este trabalho com um outro para a cadeira de História da Arte, planeei com três amigos uma pernoita no interior de uma anta (megalitismo do Neolítico), de forma a constatar e registar fotograficamente o alinhamento do corredor de entrada dessa estrutura, com a direcção dos primeiros raios de sol da aurora do solstício de inverno. Infelizmente, nessa madrugada de dezembro, o nascer do sol foi totalmente ocultado por uma densa camada de nuvens, que impossibilitou o sucesso no objectivo comum a ambos os trabalhos.

O leque de pontos a fotografar ia obviamente crescendo à medida que as minhas pesquisas e conversas sobre o tema iam avançando, e, a tarefa a que me havia proposto, rapidamente se revelou incompatível com a realização do trabalho em apenas um ano lectivo. No ano escolar seguinte inscrevi-me então, novamente, em Fotografia II, para dar continuidade ao dito trabalho.

Numa ida a uma feira de livros em saldo, a minha escolha recaiu, para espanto de alguns amigos, sobre um pesado tijolo de papel, resultante de um levantamento exaustivo e cinzento, do "Românico em Portugal", paginado de forma monótona, com manchas de texto cansativas e fotografias monocromáticas de impressão manhosa. Foi esse o livro que eu escolhi comprar…

Mas o auge programado do meu trabalho passaria por uma viagem fotográfica em modo de passeio a pé e pernoitas ao relento, até à incrível capela românica de S. Pedro das Águias, situada numa zona de escarpas rochosas, perto de Viseu. Esta pequena igreja de nave única, e cuja porta de entrada dista aproximadamente 1,5 metros da parede da encosta escarpada que se ergue a partir desse patamar, possui uma iluminação interior mínima, veiculada por pequenas frestas nas paredes laterais. 

Românico puro…

Esta viagem não aconteceu no entanto nesse ano… nem no seguinte… nem em nenhum dos que se lhes seguiram… e a dimensão do trabalho a que me havia proposta, tornou-se incompatível com as outras vertentes que na minha vida reclamavam, essas sim, estatuto de… frequência obrigatória.

O desenvolvimento e conclusão do trabalho ter-se-ão esfumado no tempo, ou, mais precisamente, na falta dele… demonstrando uma brevidade que o românico, com as suas pesadas paredes de pedra, desconhece.

Como referi, Fotografia II não era de frequência obrigatória, e assim, o que perdi foram alguns belos passeios que ficaram por fazer, mas… o românico resiste bem à passagem do tempo, e S. Pedro das Águias lá continuará, de costas viradas a nascente. A base do lado exterior dessa parede é composta por dois degraus… poiso perfeito para contemplar a vitória da luz do amanhecer sobre a obscuridade azulada da madrugada no vale.