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Thursday, May 27, 2021

[ O Trovador ]


O “Trovador”, é uma das ilustrações que criei para o novo manual de português, do 10° ano, da Porto Editora. O livro chama-se “Marca a Página”, e a sua construção esteve a cargo da experiente editora Ana Guedes, tendo como autores as professoras Bárbara Tavares, Daniela Pinheiro, Isolete Sousa e o professor Ricardo Cruz.

5 intervenientes com uma generosidade de referência obrigatória, aos quais dirijo, agora neste modestíssimo forúm, mais um sincero agradecimento.

Este desafio foi para mim, como habitualmente, propiciador de momentos de enorme prazer ilustrativo.

Como já referi em posts anteriores, a minha natureza criativa sente-se especialmente desafiada pelas áreas irregulares deixadas em branco no layout das páginas, durante a fase de paginação, destinando-se essas zonas ao preenchimento por ilustrações.

A minha mente entretém-se a adaptar e a sobrepor a essas áreas, bonecos, apresentando posturas exóticas e composições estranhas, na procura activa de conciliar, de forma o mais articulada possível, a realidade narrativa da ilustração com o contexto gráfico da página.

A minha vertente de designer, largamente familiarizado com os desafios da formatação de páginas e layouts com eficácia comunicativa, é, reconheço, uma enorme ajuda para esta tarefa…

Mas, como se verá mais à frente, não é dessa ajuda que quero falar à reduzida, paciente, compreensiva e persistente, pequena audiência deste blog.


Este “Trovador” deixou-me muito contente. 

É das ilustrações de que mais gosto, no conjunto que produzi para o “Marca a página”. Na verdade, deixou-me tão satisfeito, que acabou por dar origem a uma pequena animação, que aprofunda um pouco mais o contexto que a minha mente foi construindo ao idealizar este boneco.



Quem faz o favor de acompanhar a minha produção ilustrativa sabe que, ocasionalmente (sempre que possível e adequado), opto pela incorporação de referências naturais, eventualmente relevantes no panorama das minhas vivências… Este, é um desses casos… ainda para mais, potenciado pela vertente multimédia possibilitada pelo formato vídeo. 


O Trovador está sentado num afloramento rochoso, que foi aproveitado para suportar parte de um muro de uma casa isolada no campo. 

Encontra-se confortavelmente à sombra de uma pequena árvore que, faz muito tempo, despontou e cresceu logo ali ao lado. 

A tarde esteve quente, e à medida que o dia se vai aproximando do fim, a temperatura tornou-se amena… muito agradável. 

O homem está entregue às deambulações dos seus pensamentos, e, 

de olhar posto no infinito, vai dedilhando as cordas do seu Alaúde. 

Essas cordas fazem parte do seu corpo, 

e o som que libertam é um murmúrio da sua alma.


Esta sintonia entre o personagem principal e as coisas da natureza, é observada em primeira fila, por um espectador discreto, posicionado à direita do ecrã, pousado em cima de uma outra pedra.

Trata-se de um melro macho adulto. 

Foi então para a criação desta envolvência natural, na qual se inclui o referido personagem secundário, que contei com algumas ajudas, que aqui passo a  referir…

– Para representação desta ave, contei com o imprescindível desempenho de modelo, de um dos vários melros que vêem diariamente (na verdade várias vezes ao dia) alimentar-se e descansar na nossa varanda. O referido pássaro fez o favor de pousar para mim, paciente, enquanto eu rapidamente lhe captava os traços caracterizadores.

– Contei ainda com a preciosa ajuda da Maria João que, (além da habitual e preciosa assessoria em pareceres ilustrativos), há vários anos iniciou este ritual de alimentação da vida selvagem local, o qual desde então traz à nossa varanda, geração após geração, algumas famílias de melros (entre outros animais), com as quais já desenvolvemos níveis bastante simpáticos de interacção inter-espécies.

– Para o contexto sonoro desta ilustração animada foi também fundamental a ajuda natural de congéneres de melro, e afins, que habitam as áreas verdes das traseiras da nossa casa, e que fizeram o favor de entoar o chilrear harmonioso audível nesta banda sonora.

Sou assim um ilustrador com muita sorte… e com este tipo de ajudas tenho o trabalho muito, muito facilitado.

Manifesto-me grato  ; )



Wednesday, May 19, 2021

[ Medusa ]


POST SOUNDTRACK
https://www.youtube.com/watch?v=7HjaGF5TLNI

 Medusa, filha de Phorcys e Ceto, era uma das três Górgonas…

… havia sido agraciada com uma beleza extasiante…

assim que os olhos de homens ou mulheres contemplavam Medusa, os seus corpos experimentavam um momento de petrificação contemplativa… A beleza de Medusa, nos primeiros instantes em que era contemplada, esvaía por momentos a vida dos corpos que a observavam.

Dos vários aspectos constituintes da sua formosura, um se destacava claramente… O seu deslumbrante cabelo.

Medusa dedicava-lhe cuidados demorados, e isso era evidente. O delicado volume sedoso que emoldurava o seu rosto, deslizando suavemente pelos ombros até meio das suas costas e peito, tinha uma cor definível entre o ruivo e o acastanhado, e a incidência de luz originava invariavelmente, brilhos acobreados e vários matizes de cor… 

Vê-la iluminada pela luz da ala principal do templo, onde passava a maior parte do seu tempo, era nada menos que hipnotizante.


Atena, a deusa… era atormentada por uma inveja obsessiva induzida pela beleza de Medusa, e em particular pelo lindo cabelo desta sua serva.


Diz-se que num certo dia, Poseidon, Senhor dos Mares, ao observar Medusa, sózinha, desempenhando as suas habituais tarefas votivas, terá por ela sentido um desejo incontrolável, e à força, tê-la-á tomado num envolvimento físico contrário à vontade desta.


Atena, apesar de não estar corpóreamente no local nesse momento… era um espírito omnipresente no seu templo. Ela sabia de tudo.

Viu então no desrespeito devocional dos actos ocorridos em tão sagrado espaço, o motivo para finalmente descarregar em Medusa todo o enorme azedume acumulado pela sua alma, ao longo de eras de inveja.

Mesmo sabendo que Medusa havia sido apenas mais uma vítima da monstruosa voracidade de Poseidon, considerou-a culpável por… 


…no fundo por nada mais do que pela irresistibilidade da sua beleza.


Num ímpeto de ira decidiu amaldiçoá-la para todo o sempre.

Se a sua beleza havia até aí causado prostração a quem a contemplava… a partir daí, causaria autenticamente a petrificação do observador. Quem olhasse para Medusa converter-se-ia instantaneamente numa estátua de pedra…

Se o seu maravilhoso cabelo tinha até aí sido alvo de veneração própria, e alheia… a partir daí, seria motivo de horror para toda e qualquer criatura que o visse. Cada mecha de cabelo se transfigurou nesse momento numa serpente venenosa, em disputa hostil e constante com as suas vizinhas…

A existência de previlégio que até aí Medusa havia levado, embebida no facto de ser o centro da admiração dos outros,  converteu-se a partir desse momento, num sofrimento inextinguível e permanente.


Perseu era um semi-deus a quem foi feito um pedido macabro. 

Este é o momento da história que nos conduz à minha ilustração, acima apresentada.

Estando Medusa ainda grávida de Poseidon, foi exigido a Perseu que a decapitasse.

Para tal, Perseu muniu-se de artifícios e manhas, e com muita coragem, foi à procura de Medusa.


Levava na bainha uma poderosa espada de gume curvo, cujo desenho era famoso na antiguidade pelo seu corte exímio.

Ao chegar à antecâmara posou o armamento, e, do saco de couro de veado montês, retirou o seu ipod classic 120 GB,  de 6ª geração, e as 2 pequenas colunas autoalimentadas, as quais colocou simetricamente dispostas em relação ao eixo central da porta de entrada. 

Após desbloquear o aparelho, através do botão de segurança presente no topo do mesmo, deslizou o indicador direito em sentido contra-horário alcançando a playlist que pretendia para emoldurar musicalmente o momento que se seguiria.

Tratava-se do albúm “Miserere” de Arvo Pärt. Perseu queria exactamente a primeira faixa, por isso, uma vez encontrada a playlist, bastou premir o pequeno círculo central… 

play 

A banda sonora daqueles que poderiam ser os últimos momentos da sua vida, estava escolhida, e ecoava já pelas divisões abóbadadas.

Alguns breves preparativos mantiveram-no na antecâmara ainda por 2:07 min…


Avançando pé ante pé, Perseu entrou finalmente na área principal. A luminosidade era reduzidíssima. Apenas duas lamparinas de azeite mediterrânico produziam chama, e isso era claramente insuficiente para tão difícil tarefa… Progredir de costas voltadas para a zona onde esperava defrontar a sua adversária, guiando-se apenas pelo reflexo esbatido daquela obscura realidade, numa pouco espelhada superfície metálica, produzida com outro fim que não o de devolver imagens a um qualquer observador.

Conseguiu assim, lentamente, chegar ao fundo da grande sala, e, vislumbrar o movimento lateral de um vulto que se deslocou a partir de um canto escuro daquele espaço.

Perseu estranhou a velocidade que sentiu nesse movimento… Demasiado lento para um ataque, mas ainda assim suficientemente rápido para merecer toda a sua atenção e agilidade de resposta.

O indicador de tempo decorrido na faixa em reprodução no seu iPod, o qual havia por si sido depositado à entrada da antecâmara, marcava então 5:52…

Foi por instinto que Perseu se virou num ápice, mas conseguindo ainda assim que as emoções do momento não lhe toldassem o raciocínio, fechou imediatamente os olhos para não encarar o vulto que se lhe opunha. Na continuidade desse movimento brusco desferiu um golpe decepante… levando a Medusa o fim do seu martírio existencial.


A amaldiçoada figura não se debateu… Em Perseu ficou a sensação de que Medusa acolhera a morte como uma dádiva libertadora.

Aquela outrora bela cabeça caiu no chão, logo seguida do seu corpo… 

Medusa estaria agora livre para ser bela novamente…

Já no chão, os seus viperinos cabelos mantinham vida própria e continuavam a exibir o vigor e a agressividade que lhes era conhecido. Os olhos de Medusa permaneciam abertos, contemplando o seu carrasco.


Este é o momento que registo no meu desenho…