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Friday, August 9, 2024

[ AI art, ou… O vazio emocional a montante]

 





O primeiro Tote Bag estampado da Maria Cidrão Delicatessen exibe uma couve lombarda na sua face exterior.

Por baixo, encontra-se um bloco de referências gráficas textuais que agrupa o logótipo da Maria Cidrão Deli, o meu nome (autor do boneco), e, a marca "no AI – Only human generated content".


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Como já referi neste blog, acredito que num futuro próximo (o qual se aproxima a um ritmo para todos surpreendente), o manifesto claro referente à componente de geração humana de conteúdos, fará todo o sentido, e tornar-se-á uma realidade generalizada, nos objectos de comunicação em que tal se verifique. Equiparei-o anteriormente à distinção dos alimentos biológicos dos restantes alimentos, através da presença da simbologia gráfica que conhecemos.

Este manifesto ocorrerá, creio, por parte das várias entidades promotoras da geração dos conteúdos em causa, quer sejam os agentes geradores propriamente ditos (artistas visuais, escritores, jornalistas, músicos, etc.), quer sejam os promotores da encomenda (editoras, jornais, revistas, etc.).

Acredito que tal ocorrerá, enquanto afirmação do valor acrescentado que a produção humana de arte virá a representar, relativamente aos objectos de comunicação, ou obras, a que esse manifesto se venha a referir.

Mas que valor é esse?

Tenho bebido visualmente gigabites de imagens geradas por AI, e… que espectáculo deslumbrante.

Que eficaz sedução visual… Só que nessa sedução, ao contrário do que acontece do lado de cá (o lado dos seduzidos), do outro lado deste flirt contemplativo (o lado do sedutor), não existe nenhum coração emotivo.


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Enquanto criador de ilustrações, tenho a sorte de, ao longo deste percurso de vários anos, ter em alguns momentos, vivido a experiência de algumas pessoas me manifestarem o seu profundo agrado, gerado pela observação deste ou daquele trabalho que me tem por autor.

Essa manifestação deixa-me feliz, e, eu expresso isso mesmo à pessoa em causa. É sempre essa a minha resposta. Em alguns casos acrescento ainda a seguinte ideia – a de que fico muito contente por saber que algo por mim criado, com tanto significado para a minha pessoa, faz também sentido para mais alguém.

Neste processo, eu, enquanto criador, desenvolvo o meu trabalho em torno de uma construção conceptual, a qual assume posteriormente uma forma, forma essa que é simultaneamente veículo para o conceito original e, eventualmente percutor para a deflagração de novos conceitos e emoções na leitura do fruidor.

Há nesta experiência uma noção implícita de partilha através da obra, de envolvimento conceptual e emocional, entre os vários agentes intervenientes, partilha essa que, por vezes, transcende a descodificação do próprio conteúdo conceptual (o qual pode ser lido diferentemente pelas partes).

O visualmente deslumbrante conteúdo emanado de bits e bytes, estruturantes de algumas imagens geradas por AI,  está embebido de características formais que admiro, as quais, em muitos casos, poderiam até facilmente constar da lista de aspectos que eu ambicionaria ver associados a alguns dos meus trabalhos – modelação da luz, tratamento cromático, perspectiva, trabalho figurativo/representativo, tratamento da cor, ou até a aparente estrutura conceptual sugerida pelo todo…

Mas, a montante da experiência de fruição não há, nem nunca haverá… emoções… A experiência de fruição encontrar-se-á sempre amputada da componente da partilha emotiva resultante do encontro na experiência geradora de significados.

Esse património emotivo acumulado, que nos faz encarar com uma expectativa emocional positiva, a possibilidade de conhecer um determinado artista ou autor de trabalho que nos "agrada" (expectativa essa que nos leva por exemplo a uma sessão de autógrafos de um livro, disco etc. ou a uma inauguração de uma exposição), no caso dos conteúdos artísticos gerados por IA apresenta um problema.

Do outro lado, estará sempre uma entidade criativa esvaída de alma, um vazio que despacha obras a uma velocidade estonteante… visuais, sonoras, tácteis… a partir de operações de processamento electrónico, originadas por processos totalmente analíticos, de estudo, aprendizagem, dissecção e composição, desenvolvidos com foco na satisfação de um objectivo prático, desligado de toda e qualquer poética, e muito… muito manipulador dos seus humanos espectadores. A comoção criativa, em todo este processo, é inferior à de quem calcula raízes quadradas, ou resolve equações de segundo grau. A sua comoção é a da nulidade matemática…  zero.

Essa entidade é gelidamente exímia na desconstrução e análise dos factores que tornam admirável, uma criação admirável. Com base nessa dissecção predatória de linguagens humanas pré-existentes (a qual tem originado a instauração de vários processos judiciais em vários países), identifica ingredientes formais e elabora novas receitas compositivas. O seu objectivo, na criação de novas conjugações, é o da materialização maquinal de um enunciado (prompt), sendo ela (entidade criadora) totalmente imune aos recursos encantatórios que utiliza. Gera algo cujo sentido emocional é totalmente incapaz de abarcar. Ela (entidade criadora) é incapaz de… sentir.

Na "arte" gerada por AI a construção emocional é sempre total e exclusivamente um fenómeno limitado ao observador. 

Quão solitário é esse cenário…

Haverá quem viva bem numa existência em que a fruição tem estas caraterísticas?… certamente que sim. Quem, indo eventualmente a um qualquer tipo de museu, percorre os seus "corredores" apenas vendo, e não, contemplando… sem nunca sentir o apelo de vislumbrar o espírito que habita as obras que “lhe causam agrado”.

Há dias, contemplando a três metros de distância, o retrato de Filipe IV pintado por Diego Velázquez, dei comigo a pensar em quão diferente seria aquela experiência de fruição, caso aquele quadro tivesse sido produzido maquinalmente pelos desígnios computacionais de AI… Proponho esse exercício mental perante uma qualquer obra admirável, a todos os que analisam a questão da transferência criativa da humanidade para a AI.

A verdade é que boa parte do fascínio exercido em nós pelas obras de arte, resulta também de aspectos humanos externos à obra em si, e referentes ao autor da mesma. Boa parte desse fascínio resulta das características do contexto vivencial do artista na materialização da obra.

Factores como por exemplo: o contexto social da criação, os recursos materiais e técnicos disponíveis para aquela pessoa, o nível de formação do artista, ou, por oposição, e de forma ainda mais relevante, o seu carácter autodidata e a ausência dessa tal formação artística.

Na relevância desse contexto, cada recurso técnico que intervêm em auxílio do artista, retira um patamar de valor à obra. À semelhança do sucedido  num número de circo, cada dificuldade ou obstáculo que acresce à tarefa do artista elevará o estatuto da obra a um novo patamar. A produção de arte através de ferramentas de AI corresponde ao esvaziamento total desse contexto.

No universo da AI, a envolvente da obra… resume-se ao modelo do processador, à versão do software gerador, e, eventualmente, às características semânticas do “prompt” primordial.


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Este novo formato de relação das pessoas com as obras é evidentemente possível. 

Este novo formato de relação das pessoas com as obras poderá generalizar-se, e tornar-se mesmo, predominante. 

Acredito que em algumas vertentes artísticas assim acontecerá. Tornar-se-á absoluto.

Nessas áreas operativas desaparecerão os artistas. Ficarão as obras… estas… filhas de bits e bytes sem comoção. 

A emoção será depois conferida pelo utilizador… na “utilização” dos objectos artísticos. 

O entrosamento emotivo ocorrerá apenas a jusante.

Esta realidade terá aspectos encarados como muito positivos, claro. Serão essas vantagens que vão eventualmente consolidar esta realidade.

O acesso a imagens ilustrativas, vídeos e alinhamentos sonoros passará a estar disponível para todos os desprovidos de talentos criativos nessas áreas. 

Na perspectiva do utilizador final, esse facto representará um progresso imenso.

Para o indivíduo, toda essa disponibilidade custará zero, ou, terá um custo muito baixo. Interrogo-me no entanto sobre o valor da factura a pagar pelo colectivo… O que vamos nós perder enquanto espécie?

Não deixa de ser curioso que a produção artística, constituindo-se nas paredes cavernais da pré-história, como um dos aspectos que primeiro diferenciam a nossa espécie do resto da criação terrestre, se encontre agora, em resultado da evolução tecnológica dessa mesma espécie (a nossa), perante este dilema existencial. 

Teremos nós esgotado o potencial da arte enquanto recurso definidor da nossa espécie?